Corinthians Condenado: Ex-Atleta Kauê Revela Negligência e Fim de Carreira

A vida de um atleta profissional é forjada em sacrifícios e sonhos, mas para Kauê Moreira de Souza, ex-jogador do Corinthians, essa jornada se transformou em uma amarga desilusão. Aos 24 anos, ele foi forçado a abandonar os gramados, sem nunca ter vivenciado o auge da carreira, alegando negligência médica por parte do clube que o formou.

Desde abril de 2021 até o mesmo mês de 2024, Kauê afirma ter sido submetido a um tratamento inadequado para lesões em seu joelho direito, especificamente um espessamento fibrocicatricial do ligamento colateral medial e tendinopatia patelar. Essas condições, segundo ele, foram negligenciadas pelo departamento médico corintiano.

As consequências dessa trajetória são severas e impactam o cotidiano do ex-atleta. Atualmente, Kauê enfrenta dificuldades em atividades rotineiras como subir e descer escadas, pedalar, dirigir e praticar exercícios físicos. A perda da oportunidade no futebol deixou marcas profundas, e ele busca agora um novo propósito para sua vida.

Justiça do Trabalho Determina Indenização Milionária ao Ex-Corintiano

A gravidade da situação foi reconhecida pela Justiça do Trabalho de São Paulo, que em outubro do ano corrente, proferiu uma sentença condenando o Corinthians. O clube deverá pagar a Kauê uma indenização por danos morais, além de uma pensão mensal de R$ 12 mil, que se estenderá até o ex-jogador completar 35 anos. O montante total devido ao atleta ultrapassa a marca dos R$ 2,5 milhões.

A decisão judicial é um marco importante, mas não apaga a dor e a frustração de Kauê, que desabafou em entrevista: "O Corinthians tirou o meu sonho, a minha esperança. Eu acho que tirou até um pouco do meu brilho. O meu maior sonho virou a maior frustração da minha vida. Não foi só o futebol, tirou a minha vida".

A história de Kauê no Corinthians começou em abril de 2019, quando, aos 18 anos, chegou ao clube para integrar a categoria sub-23, criada na gestão do ex-presidente André s Sanchez, com um salário inicial de R$ 3 mil. Originário de Diadema, Kauê havia passado pelas categorias de base de outros grandes clubes como Santos, São Paulo e São Bernardo, antes de vestir a camisa alvinegra.

Suas boas atuações nas categorias de base rapidamente lhe renderam uma renovação de contrato e um aumento salarial para R$ 12 mil. Contudo, em meados de 2021, durante um treinamento, um incidente aparentemente comum deu início ao que se tornaria o fim de sua promissora carreira e a sua desilusão com o futebol.

Ele descreve o momento da lesão: "Tomei um encontrão no treino, coisa normal. Estiquei demais o meu joelho e tive uma torção. Senti muita dor, muita dor mesmo. Fui para o departamento médico, eles avaliaram meu joelho no achismo, pega aqui, pega ali, dizem que não é nada. Só que eu não consigo me mexer. Eles (departamento médico) dizem que vou ter que ficar um período na fisioterapia".

Tratamentos Ineficazes e o Agravamento da Situação Médica

Em maio de 2021, duas ressonâncias magnéticas confirmaram as lesões no joelho direito: tendinopatia patelar e espessamento fibrocicatricial do ligamento colateral medial. Apesar do diagnóstico, o departamento médico do Timão optou por um tratamento conservador, sem a realização de uma intervenção cirúrgica imediata.

De maio de 2021 a fevereiro do ano seguinte, Kauê permaneceu sob os cuidados dos fisioterapeutas da base, mas sem qualquer melhora significativa. Nesse período, ainda lesionado, foi emprestado ao Marcílio Dias, onde não conseguiu entrar em campo sequer por um minuto no Campeonato Catarinense.

Somente em março de 2022, longos 11 meses após a lesão inicial, Kauê foi submetido à primeira cirurgia, realizada por Joaquim Grava, que na época atuava como consultor médico do Corinthians . No entanto, o procedimento não trouxe o alívio esperado. Kauê expressa sua frustração: "O doutor olhou meu caso e disse que era urgente. Se era urgente, poderia ter resolvido antes. Meu tendão poderia romper e tinha uma fissura no osso da patela. Eu opero e continuo com dor, a mesma coisa. Parece que até um pouco pior. Eu falo: 'Meu Deus do céu, o que está acontecendo?'. Era uma coisa para resolver e piorou".

Em julho de 2023, 27 meses após a lesão, o jogador passou por uma segunda operação com Joaquim Grava. Pouco antes desse segundo procedimento, ele havia sido promovido para dar continuidade ao tratamento no departamento médico do time profissional. Durante todo esse período de recuperação e tratamentos, o contrato de trabalho de Kauê com o Corinthians precisou ser renovado em diversas ocasiões, conforme a legislação que impede a dispensa de jogadores lesionados em atividade.

Pressão Psicológica e o Fim Prematuro da Carreira

O ambiente no CT, segundo Kauê, replicava a experiência das categorias de base: tratamentos ineficazes, joelho sem fortalecimento e, para agravar, uma pressão psicológica que ele hoje considera ter vindo do próprio Corinthians . "Um doutor do Corinthians me passou um remédio dizendo que a dor era coisa da minha cabeça. E eu sabia que não era. Eles (departamento médico) queriam me fazer acreditar que era da minha cabeça. Eu tomei um remédio, não sei para que que servia, mas falaram que era para a ansiedade e mais alguma coisa", relatou.

A medicação mencionada por Kauê era Velija 30mg (cloridrato de duloxetina). A bula indica o medicamento para transtorno depressivo, dor neuropática, estados de dor crônica associados à osteoartrite do joelho em pacientes acima de 40 anos, e transtorno de ansiedade generalizada. A receita foi assinada pelo médico Leonardo Hirao em 22 de novembro de 2023. Hirao, que não tem mais vínculo com o Corinthians , esclareceu ao ge que a duloxetina foi indicada para dor crônica no joelho, e não para ansiedade ou depressão. "A duloxetina ou velija é utilizado para tratamento de dor crônica. O medicamento em si não cura a lesão. Mas teria o papel de reprogramar um padrão prolongado de dor, a partir de três meses isso pode ocorrer. Não posso responder em relação ao departamento médico do clube, uma vez que não tenho mais vínculo. Mas foram esgotados todos os recursos disponíveis que tínhamos na época. O uso do medicamento foi mais uma tentativa de reabilitar o atleta para que ele pudesse retornar aos gramados", afirmou o médico.

Em abril do ano passado, três anos após a lesão e sem ter disputado uma única partida, Kauê foi desligado do Corinthians . Nos meses seguintes, o ex-meia tentou recomeçar a carreira no Itaberaí e, posteriormente, no Inhumas, ambos clubes de Goiás. No entanto, após apenas 20 minutos em campo em 2025, a antiga promessa do Timão tomou a dolorosa decisão de encerrar sua carreira profissional, devido à persistente fraqueza em seu joelho direito.

O momento da desistência foi de grande abalo emocional. "Entrei dentro do ônibus e comecei a mandar mensagem para minha família. Não estava bem, me faltava o ar. Eu comecei a chorar, chorar muito mesmo. Não entendi o que estava acontecendo, todos falavam que eu estava com crise de ansiedade", descreveu Kauê. Ele reconhece que já havia experimentado sintomas semelhantes durante sua passagem pelo Corinthians , mas não os compreendia na época. "Já tive aquilo quando estava no Corinthians , mas eu não entendia o que era porque não falava para ninguém o que acontecia comigo. Eu sofria sozinho. Hoje, faço terapia. A terapia foi uma coisa boa porque consegui me soltar mais. Qualquer pessoa com cabeça um pouco mais fraca teria feito merda. É complicado. As pessoas podem falar que estou me vitimizando, mas só quem passou sabe".

O Presente, o Futuro e a Busca por Qualidade de Vida

Atualmente, Kauê reside em Diadema com sua namorada, Giovanna, e aguarda o início do pagamento da pensão do Corinthians para custear uma cirurgia avaliada em R$ 30 mil em seu joelho direito. Este procedimento é crucial para que o ex-jogador possa recuperar a qualidade de vida e superar as limitações de movimento que hoje o afligem. "Imagina você bater seu joelho na quina de um rack ou na cama e conviver com essa dor. É uma dor de pancada, só que ela é constante. Toda vez que eu coloco meu pé no chão, ela cutuca. E eu tive que aprender a conviver com essa dor", relata.

Além da cirurgia, Kauê planeja iniciar a formação universitária no próximo ano, buscando, aos poucos, reintegrar-se ao mercado de trabalho em uma nova função. Sua reflexão sobre o passado e o presente é carregada de melancolia: "O Kauê era sonhador. Hoje, sou mais um que entrou para a estatística do futebol, mas não por ter feito algo de errado. Fico muito triste, tiraram isso (sonho de ser jogador) de mim. É algo irreversível, não estava nos meus planos. Hoje, procuro outra coisa para fazer, estou em busca de novas oportunidades. A primeira coisa que eu tenho que fazer é me encontrar na vida".

A readaptação é um desafio constante. "Estou tentando me encontrar na vida, saber quem eu sou. Preciso saber quem é o Kauê hoje e esquecer do Kauê jogador de futebol. Fazer uma faculdade, estudar, procurar outro caminho, trabalhar. Mas como vou trabalhar se não consigo pegar peso, não consigo ficar agachando? Não posso ficar sentado muito tempo. Atrapalhou muito minha vida. É difícil demais se readaptar", explica. Ele expressa o desejo por atividades simples que lhe foram tiradas: "Vamos num parque dar uma volta de bicicleta. Eu consigo andar dez minutos, encosto a bike e fico olhando os outros andar. Preciso me achar em uma coisa que alguém fez, não fui eu que me perdi".

Kauê lamenta o impacto em seus pais e na percepção das pessoas. "Fico triste pelos meus pais. As pessoas estão falando: 'Acabaram com a carreira do Kauê'. Acabaram com a vida também, a vida normal de um ser humano". Dirigir, subir escadas, ir à academia ? atividades rotineiras para a maioria ? tornaram-se um fardo. "Dirigir não é mais uma coisa normal que faço. Uma coisa normal para um ser humano, subir escada, ir para uma academia? Não consigo ganhar força na perna por causa da dor. Atrapalhou muito a minha vida pessoal".

A Visão dos Médicos e a Posição do Corinthians

Joaquim Grava, responsável pelas duas cirurgias no joelho de Kauê, foi procurado e declarou que os procedimentos foram um sucesso do ponto de vista médico. No entanto, ele reconheceu que os tratamentos pós-cirúrgicos falharam, tornando necessária uma terceira intervenção para que Kauê recupere sua qualidade de vida. "O Kauê tinha uma doença crônica, uma tendinite patelar. É algo muito difícil de tratar. Fizeram (no CT da base) o tratamento clínico, mas ele alegava dor. Resolvemos fazer uma ressecção, onde tinha necrose no tendão. O Kauê foi melhorando aos poucos, mas logo piorou. Então, ele fez uma segunda cirurgia para tirar outro pedacinho do tendão", detalhou Grava.

O médico também relembrou o encaminhamento de Kauê para o departamento profissional. "Depois, ele seguiu se queixando que sentia dores nos exercícios de fisioterapia. Eu mesmo dei a ordem para o Bruno Mazziotti (à época coordenador de saúde e performance do Corinthians ) para que o Kauê fosse tratar no CT do profissional. Ele ficou lá por muito tempo". Grava criticou a decisão do Corinthians de dispensar o jogador. "Eu saí do Corinthians em dezembro de 2023, e o Kauê foi mandado embora em 2024. Mandaram o atleta embora com dor e sem estar recuperado. Ele tinha que fazer uma terceira cirurgia, um reforço de tendão, algo grande. O Corinthians não poderia tê-lo mandado embora naquelas condições. Se eu estivesse lá, não o deixaria ser dispensado", concluiu.

Procurado pela reportagem, o Corinthians informou que acatará a decisão da Justiça do Trabalho e arcará com o pagamento da pensão determinada. A saga de Kauê serve como um alerta sobre a responsabilidade dos clubes na gestão da saúde de seus atletas, especialmente aqueles em formação, e o impacto duradouro que decisões médicas podem ter em uma vida.